Antonio José Lopes |
O professor, Antonio José, fala sobre a coleção Matemática Hoje É Feita Assim, na qual discute questões relativas ao ensino da matemática e propões novas fórmulas.
Se, por um lado, a matemática ainda não conseguiu se desvencilhar do estigma de bicho de sete cabeças, por outro, há quem queira perpetuar sua aura de ciência acessível apenas a um seleto grupo de crânios. Mas essa manipulação começa a enfrentar (e perder terreno para) militantes da matéria, convictos de que "qualquer indivíduo, em condições físicas e mentais normais, pode produzir conhecimento matemático, desde que esteja exposto a tal desenvolvimento". São palavras do professor Antonio José Lopes, ou simplesmente professor Bigode, estudioso da matemática e suas metodologias, na linha de frente do Centro de Educação Matemática – e um dos mais ativos desses militantes.
Ciente de que tais citações sobre a monstruosidade ou mesmo a superioridade da matemática são ultrapassadas, ele atua na contramão dessas orientações para "evitar um divórcio precoce dos alunos com o conhecimento". Consultor de secretarias de educação e especialista em currículos (foi um dos consultores do MEC para os Parâmetros Curriculares Nacionais – PCNs) e gerenciamento de salas de aula, Antonio José Lopes e autor da coleção Matemática Hoje É Feita Assim (Editora FTD), de quatro volumes.
Além dos 22 anos de experiência em salas de aula, lidando com adolescentes (a produção de conhecimento desses alunos é tema sua tese de doutorado, em Didática da Matemática, na Universidade Autônoma de Barcelona), Lopes também trabalha com formação de professores, ministrando cursos na PUC-SP e na USP. "Sou um dos poucos pesquisadores que ainda dá aulas – a sala é meu laboratório", diz. "É onde podemos plantar a semente do exercício do raciocínio criativo".
Em seu livro, o senhor propõe uma nova metodologia para o ensino da matemática. Quais seriam seus maiores diferenciais frente ao ensino tradicional (e que costuma-se repudiar)?
A. Lopes - A significatividade é a marca principal. Para prover a matemática de significatividade utilizo a história, a interdisciplinaridade, relação com áreas como as artes e a geografia entre outras, aplicações interessantes, jogos de raciocínio, matemática contemporânea e outros recursos. O objetivo principal é tocar o aluno e conquistá-lo para a aventura do pensamento matemático. É uma obra interativa. Em suas páginas os adolescentes podem refletir sobre a matemática dos códigos de barra, que matemática se usa nos computadores, construir artefatos como uma máquina de calcular, estudar a geometria de artistas como Escher e Peticov, utilizar jornais diários para desenvolver uma visão crítica de como a matemática é usada socialmente. A diferença principal é esta, trago para os alunos uma matemática viva, que tem sido sonegada nas propostas tradicionais.
Muitos estudantes, principalmente do ensino médio, reclamam que são obrigados a aprender uma matemática que jamais vão usar no dia-a-dia? O que o senhor tem a dizer sobre isso?
A. Lopes - É certo que a maioria dos conhecimentos que vão ter de estudar não servem para o dia-a-dia -- pelo menos de modo imediato. Mas o utilitarismo não deve ser o único norteador para se compor um currículo. Aprendemos matemática para formar o pensamento, por questões históricas, sociais, culturais e até estéticas. O problema é que a maioria dos alunos só tem contato com a matemática que não lhes diz nada, nem da ótica utilitária nem das outras. São privados de raciocinar com autenticidade. Passam 11 anos na escola decorando, num processo de que não participam -- apenas se exercitam. Decoram teoremas demonstrados por outros, não fazem demonstrações autênticas nem são instigados a querer demonstrar algo. Fazem por que têm de fazer. Quanto às fórmulas, são adestrados a aplicá-las, raramente são expostos a situações em que poderão inventar uma fórmula. São obrigados a memorizar nomes que mais se parecem com termos de bula de remédio, ao invés de ter pela frente situações em que sintam necessidade de nomear.
Matemática Hoje é voltado a professores e pretende discutir a questão da aplicação cotidiana do que se ensina, assim como a metodologia. O senhor acredita que a obra vai atingir seu objetivo, já que seu livro anterior Matemática Atual (1994, quatro volumes, pela Editora Atual), segundo o senhor, foi considerado ameaçador e de certa forma boicotado, por "dessacralizar a matemática"?
A. Lopes - A obra atual já atingiu o objetivo. Quando a obra antecessora foi lançada há 7 anos atrás, o propósito era o de abrir caminho para uma discussão em relação a novos rumos para o ensino-aprendizagem da matemática, um novo currículo, novas metodologias e recursos didáticos. Tais propósitos foram atingidos. Meu trabalho influenciou currículos (PCN), novas obras e projetos didáticos. "Matemática Hoje é Feita assim" publicado pela editora FTD, tem um caminho menos tortuoso, pois hoje o professorado é mais aberto e desejoso de um ensino mais criativo, instigante e significativo da matemática. Além do fato de que as novas diretrizes curriculares oficiais legitimam as escolhas feitas na coleção. Há um anseio nacional por uma matemática na escola que diga alguma coisa aos alunos. Todos de modo geral querem dar um basta na matemática chata ou aterrorizadora.
Essa "dessacralização" aconteceria justamente pela aplicação diferenciada da matéria, mais contextualizada no dia-a-dia e menos acadêmica. Pelo jeito, a maioria dos professores insiste na matemática formal, parecendo que complicar é preciso. Isso é verdade?
A. Lopes - Grande parte dos professores foi formada em escolas que valorizam um formalismo precoce e desprovido de significados. Muitos imprimiam essas características nos cursos por falta de opções, e por falta de legitimação. O movimento da sociedade atualmente vai na outra mão. O setor produtivo exige indivíduos capazes de pensar em cima de situações novas e não mais decoradores de velhas receitas. O formalismo é necessário em outro estágio do ensino, mas nunca no ensino fundamental onde o mais importante é plantar as sementes e solidificar os alicerces. É no ensino fundamental que devemos conquistar os alunos para a aventura do raciocínio criativo. Não podemos desperdiçar esta fase -- preciosa -- com situações pobres de significado, que podem levar à um divórcio precoce dos alunos com o conhecimento.
Quando falo em divórcio, estou baseado em fatos reais, estatísticas, estudos e em minhas próprias investigações. São conhecidas as estatísticas a respeito do medo e da aversão que os jovens têm pela matemática. Por outro lado, em mais de 20 anos de magistério, não me recordo de um aluno sequer que a tratasse sem entusiasmo. Isto ocorria porque eles se sentiam sujeitos do próprio pensamento -- e não meros fazedores de tarefas burocráticas.
A matemática ainda é a maior responsável por repetências e eliminações de candidatos em qualquer prova? Se sim, comente.
A. Lopes - A matemática ainda é a matéria que mais elimina e exclui. Qualquer indivíduo pode acessar os índices de aproveitamento nos concursos e vestibulares. Ainda que tais índices mostrem um lado obscuro (afinal são capazes de dizer que xis % não teve desempenho satisfatório), de modo geral são exames que podem nos dizer o que uma fração de indivíduos de um grupo não consegue responder, mas são incapazes de dizer o que os alunos sabem. Nossa meta é avaliar para valer, mas na direção de diminuir drasticamente a exclusão provocada pela matemática tradicional.
"Qualquer indivíduo, em condições físicas e mentais normais, pode produzir conhecimento matemático, desde que esteja exposto a tal desenvolvimento."
Na escola, o professor de Matemática e de outras matérias da área de Exatas ainda são vistos pela direção e até por outros professores como seres superiores? Comente esse mito da superioridade das ciências exatas.
A. Lopes - Este mito está na base de uma visão mais ampla a respeito da natureza do conhecimento. É um problema a um mesmo tempo epistemológico, filosófico e de poder. Tal hierarquia está presente também na academia. Chegou ao senso comum. Fulano de tal que é o bom de conta é um gênio, aquele outro que não dá para a matemática é melhor se dedicar às humanas, música ou futebol. Mitos e crenças alimentados para justificar a exclusão. Tenho dezenas, talvez centenas de exemplos da história da própria matemática, em que ela se apresenta como uma ciência tão falível e cheia de problemas abertos como a biologia e a arqueologia. Os professores que alimentam este mito ignoram a história real da matemática.
O senhor fala muito de cidadania cognitiva. Relacionado à sua matéria, esse conceito tem a ver com aquilo que o senhor chama de "matemática do trabalho"?
O senhor fala muito de cidadania cognitiva. Relacionado à sua matéria, esse conceito tem a ver com aquilo que o senhor chama de "matemática do trabalho"?
A. Lopes - Não é bem isso. Quando falo em cidadania cognitiva estou me referindo ao direito que todo indivíduo tem de utilizar sua mente para poder avaliar uma situação, usando seu pensamento matemático para poder decidir e de tabela, usufruir, realizar, partilhar, saborear -- em uma palavra, ser incluído. A grande maioria dos alunos de matemática jamais teve uma experiência real de raciocinar com autenticidade e raramente é estimulada a utilizar seu conhecimento matemático frente a situações para as quais não foram treinados. Um exemplo próximo que me vêm à cabeça foi o anúncio no Brasil inteiro do número de presentes na megamissa do padre Marcelo no dia de finados. A maioria -- a grande imprensa incluída -- consumiu os números oficiais. Poucos puseram tais números em relação, para poder produzir novas questões do tipo: O quê? Uma Belo Horizonte todinha no autódromo de Interlagos ? Como poderiam ter se deslocado até lá ? Vamos por os números em relação.
Podemos considerar num extremo que cerca de 300 mil vieram a pé, pois vivem na região. Os outros 2,2 milhões usaram algum meio de transporte. Se 100 mil vieram de carro, já teremos um grande problema de congestionamento dado que nos dias de Fórmula 1 -- cerca de 60 mil pessoas vindas de carro --, a região fica um caos. Restam 2,1 fiéis que devem ter ido de ônibus. Faz de conta que lotaram um ônibus, cerca de 70 por ônibus. Logo vamos precisar de 30 mil viagens. Fazendo de conta que cada ônibus fez três viagens seriam necessários 10 mil ônibus, ou seja toda a frota da cidade de São Paulo. A informação portanto é absurda. Um avaliação em cima da fotografia aérea mostrou que no máximo teria ido ao evento 250 mil pessoas, dez vezes menor do que foi divulgado.
O que quero mostrar com isto é que matemática viva envolve por as coisas em relações, e não é só para resolver problemas cotidianos ou do mundo do trabalho. Quanto mais conheço de geometria significativa melhor posso avaliar uma obra de arte arquitetônica, um quadro de Mondrian ou uma cestaria indígena.
Qual é sua tese de doutorado e o que o senhor disse que faz em escola particular e pretende fazer numa pública?
A. Lopes - O que digo é que há um culto à escola privada e ao que se faz nela. Eu mesmo sempre trabalhei em escolas particulares. Mas todo o resultado criativo e complexo que obtive nas escolas particulares, tenho a convicção de que se pode obter com os alunos da escola pública. É claro que as condições serão menos favoráveis, mas do ponto de vista da cognição os alunos da escola pública tem tantas possibilidades de produzir matemática original, criativa e complexa quanto os alunos da escola privada. Em minha tese mostro como uma certa decisão sobre como gerir a sala de aula, somada à uma certa visão do conhecimento matemático (que exponho na minha coleção de livros) pode levar a maioria dos alunos a produzir conhecimento matemático complexo. Analiso a produção dos alunos a partir de suas próprias escritas. Analiso redações de alunos que acompanhei dos 12 aos 15 anos a respeito da matemática, de suas produções às reflexões de natureza emocional e cultural.
O senhor está de acordo com os atuais Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) para o ensino de matemática? Acha que alguns conteúdos são muito complexos para determinadas faixas etárias?
A. Lopes - Fui um dos consultores dos PCN de Matemática e portanto estou de acordo. Acho que poderíamos ter avançado um pouco mais, mas o texto atual é um grande avanço e tem que ser discutido e implantado. Entretanto, discordo que os PCN são mais complexos que a pauta curricular que existia. De meu ponto de vista há poucas inovações, o texto dos PCN dá uma arrumação sensata, põe ordem na casa e elimina certos abusos. Quase tudo que está nos PCN foi discutido entre os anos 40 e 60 por educadores sérios como Euclides Roxo e Malba Tahan. Mesmo "novidades" como se abrir para usar a calculadora não são propostas novas. Malba Tahan já havia feito isto no final dos anos 50, quando as calculadoras ainda eram mecânicas e movidas a manivela. Tanto os PCN quanto minha coleção contemplam os estudos sobre aprendizagem que vêm da Psicologia Cognitiva, para melhor ordenar os conteúdos e evitar que estes e técnicas sejam ensinadas precocemente ou com ênfases inadequadas.
No que consiste o trabalho da Sociedade Brasileira de Educação Matemática e do Centro de Educação Matemática?
A. Lopes - A Sociedade Brasileira de Educação Matemática é uma sociedade civil sem fins lucrativos, que têm entre seus objetivos promover a discussão a respeito da Educação matemática através de eventos, publicações, estudos e etc. Ela congrega todos os interessados na área, atualmente tem cerca de 12 mil filiados e é uma das maiores sociedade científicas do país. É uma entidade aberta. O Centro de Educação Matemática é uma instituição de ensino e pesquisa, de que sou membro fundador, que se dedica ao desenvolvimento de estudos e recursos didáticos e ainda à formação de professores.
Por Juliana Resende/BR Press
São Paulo
Caro leitor, qual é a parte do texto que você concorda com o profº Antônio? E qual você discorda? Por quê?
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