quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

Super-Homem? Batman? Não! É o Super Bertie!

Logicomix, a grande aventura da lógica em quadrinhos, lidera as vendas de romances gráficos nos EUA

Um gibi sobre a lógica e a matemática já seria uma façanha e tanto. Que virasse best-seller, uma redobrada proeza. Mas foi isso o que aconteceu com Logicomix, uma história em quadrinhos sobre a busca da verdade e os fundamentos da matemática e da lógica simbólica, há semanas liderando as vendas dos romances gráficos editados nos Estados Unidos.

Sem super-heróis, porém repleta de ídolos da ciência e da filosofia analítica, é uma aventura intelectual sui generis: imaginosa, excitante, bem-humorada, instrutiva, um blend de fantasia e reflexões tão acessível quanto O Mundo de Sofia, de Jostein Gaarder. Outro parâmetro é o premiado Gödel, Escher e Bach, de Douglas Hofstadter, biomix de três gênios, com incursões pela lógica matemática, pela arte, por fugas, geometrias, paradoxos, proteínas, estruturas sintáticas, zen-budismo e inteligência artificial, porém sem quadrinhos. Mesmo quem não entende nem gosta de matemática lê Logicomix com imenso prazer - elevado ao quadrado se for um admirador de Bertrand Russell.

Só elogios recebeu o épico de Apostolos Doxiadis & Christos H. Papadimitriou, mencionado em quase todas as listas de "melhores livros do ano" nos dois lados do Atlântico, do New York Times à revista online Salon, e prestes a sair aqui pela Martins Fontes. "A matemática nunca foi tão estimulante", reconheceu o crítico do britânico The Guardian. "Não tem nada a ver com os seus aparentes similares", advertiu um colunista do San Francisco Chronicle, distinguindo Logicomix do que Frank Miller fez com a Batalha das Termópilas em 300, que, na comparação, vira um gibi rotineiro.

Escrito originalmente em inglês e logo traduzido para o grego por Doxiadis, tem mais dois coautores: o desenhista Alecos Papadatos e a colorista Annie Di Donna. Apostolos nasceu na Grécia e cresceu na Austrália; Christos é americano de origem grega, como Alecos. O primeiro teve o estalo e o segundo, doutor em informática, contribuiu com o que aprendeu sobre lógica, matemática e computadores na Universidade de Berkeley. Os dois custaram um pouco a acertar o passo, enquanto davam voltas com o cachorro de Doxiadis pelas ruas de Atenas. Doxiadis queria mais tragédia espiritual, mais drama pessoal, e Papadimitriou, maior ênfase na lógica. Esse peripatético brainstorm faz parte da narrativa, também, portanto, uma experiência metalinguística.

Toda a saga da argumentação lógica e os conflitos envolvendo seus protagonistas, desde a segunda metade do século 19 até a aurora digital, é contada pela perspectiva de quem a viveu com mais intensidade, o filósofo, lógico e agitador político Bertrand Russell (1872- 1970), o mais longevo dos gênios vitorianos (Bernard Shaw morreu em 1950, com quatro anos a menos). Merecida deferência. Além de extraordinário matemático, o parceiro de Alfred North Whitehead no seminal Principia Mathematica foi, num certo sentido, o mais influente filósofo do século 20, o Voltaire do seu tempo, o primeiro intelectual público moderno.

O mais racional dos epicuristas ou o mais epicurista dos racionalistas, Bertrand Russell, para os amigos, Bertie, abriu as portas do pensamento ocidental para várias gerações, que até por isso o puseram acima de Martin Heidegger (relevem a ideologia nazista do professor, mas não a sua obscuridade e pedante falta de humor) e, no que diz respeito às revoltas estudantis dos anos 1960, acima de Herbert Marcuse. "Baderneiro" de rua, não de gabinete, como Marcuse, Russell foi o verdadeiro padroeiro da estudantada rebelde e pacifista de quatro décadas atrás.

Afora as mulheres que passaram, oficialmente, por sua vida, gravita em torno do mercurial galês uma dezena de companheiros de jornada, em geral ligados ao legendário Círculo de Viena (confraria de intelectuais interessados em assuntos filosóficos, epistemológicos e científicos, berço do Positivismo Lógico), como Moritz Schlick, ao nicho acadêmico de Cambridge, como Whitehead e G.E. Moore, ou a ambos, como Ludwig Wittgenstein. Para não falar de Bloomsbury, grupo lítero-filosófico-artístico de Londres, por cuja criação Bertie e Moore foram os principais responsáveis.

A certa altura, Doxiadis se pergunta por que tantas sumidades da lógica e da matemática e seus parentes mais próximos tinham um parafuso a menos. Seria a loucura o preço cobrado pela busca obsessiva do absoluto racional?

Russell conviveu com dois tios malucos e um filho e uma neta esquizofrênicos. O prussiano David Hilbert, matemático da mesma estatura do francês Henri Poincaré, também teve um filho esquizofrênico, que aos 15 anos foi trancafiado num hospício pelo pai, e lá apodreceu. Kurt Gödel, outra estrela de Logicomix, era paranoico, e George Cantor morreu louco, depois de tentar provar que as peças de Shakespeare foram escritas por Francis Bacon e que Jesus era filho natural de José de Arimateia. Os supostos normais ou desenvolveram outro tipo de doença mental (como o antissemitismo do alemão Gottlob Frege) ou morreram muito mal, como o húngaro John Von Neumann (de um câncer provocado pelas partículas atômicas das bombas que ajudou a criar) e Moritz Schlick (assassinado por um estudante nazista).

Logicomix fecha com panache uma década em que, mais do que nunca, os quadrinhos não tiveram vergonha de pensar alto e ousaram pescar fora do raso, adaptando e parodiando obras literárias, discutindo questões de Física e metafísica, fazendo jus, em suma, ao pernóstico rótulo de "romance gráfico", por sinal execrado por Robert Crumb e outros visionários dos comics.

Há pelo menos duas décadas que clássicos da literatura ressuscitam sob a forma de quadrinhos, não necessariamente seguindo o figurino convencional da coleção Classics Illustrated, de meados do século passado, aqui adaptada pela Editora Brasil-América com o título de Edições Maravilhosas. Perdi a conta de quantos gibis já se inspiraram na obra de Kafka depois de Crumb (editado entre nós pela Relume Dumará) e Peter Kuper (o melhor de todos, traduzido pela Conrad), para não falar da influência de Kafka nos quadrinhos de Art Spiegelman. Era sem dúvida o Gregor Samsa de A Metamorfose que os autores de uma aventura do Superboy tinham em mente quando, faz pouco tempo, transformaram a namoradinha do Super-homem adolescente, Lana Lang, numa mulher-inseto.

Das paródias, as mais interessantes trazem a assinatura de Robert Sikoryak, inventor da coleção Masterpieces Comics. As "obras-primas" da literatura entram com a intriga, a problemática, e os quadrinhos com os personagens. Na sua versão de A Metamorfose, quem acorda transformado num horripilante inseto é o cândido Charlie Brown, e quem é marcada com a estigmatizante "letra escarlate" de Nathaniel Hawthorne é a mãe da Luluzinha. À margem dessa coleção, Sikoryak criou os Dostoyevsky Comics, assim mesmo grafados, com um Batman atormentado por todos os crimes, culpas e castigos do dostoievskiano Raskolnikov. É muito bem sacado, embora sem o brilho, a originalidade e a audácia das experiências do britânico Alan Moore e seu parceiro David Gibbons, na segunda metade da década de 1980.

Moore criou e Gibbons deu forma gráfica a Watchmen, o cerebral gibi, não o filme dele extraído. Cheia de alusões literárias, figuras reais (Nixon, Ronald Reagan, etc.) e referências a questões de Física, matemática fractal e Teoria do Caos, é uma distopia erudita, de resto condenada à atualidade eterna, cuja síntese é a famosa pergunta do satirista romano Juvenal, "Quis custodiet ipsos custodes?" (Quem vigiará os vigias?), inspiração do título Watchmen (vigias, guardas, em inglês). Sem a contribuição seminal de Moore, seriam bem menores as chances de um gibi com Bertrand Russell como herói e os fundamentos da matemática como tema sair do papel, ou melhor, do computador. 

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Referência:

Sérgio Augusto, ESPECIAL PARA O ESTADO. 02 de Janeiro de 2010.
Montagem: Mathuesmáthica

Um comentário:

  1. Qualquer um que consegue transformar a matemática em comércio e ganhar muito dinheiro com para mim é gênio. E a logicomix é um exemplo disso. Os aurores de livros de matemática de sucesso devem ter os seguinte lemas:"1.meu valor está na forma como eu trato o leigo; 2.e também na quantidades de leigos que posso arrebanhar.". Gostei. Valeu.
    elementosdeteixeira.blogspot.com (UBM)

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