O romance da arte com a ciência dos números, figuras e funções ultrapassa a história da arte ocidental, se você considerar nessa matemática a produção estética encontrada na mãe-natureza. Basta observar: as plantas e árvores se desenvolvem por algoritmos, a espiral da concha no Nautilus cresce na proporção da razão áurea, a seção de um favo de mel tem o formato hexagonal que permite o máximo de armazenamento, os cristais apresentam uma delicada simetria. Os exemplos são numerosos onde beleza e eficiência andam de mãos dadas.
De fato, a matemática e os matemáticos, a arte e os artistas se misturam o tempo todo nas mais diversificadas práticas. Seus territórios se cruzam constantemente através da exploração de conceitos como os de topologia, caos, belo, proporção, forma, simetria, espaço, ritmo, fluxo, (des)continuidade, entre tantos outros. Na história da pintura, por exemplo, a construção da perspectiva está entre os mais importantes. Mais recentemente, vale recordar do pintor catalão Salvador Dalí (1904-1989), que tinha como fiel escudeiro o matemático Thomas Banchoff, pesquisador da Brown University, em Providence, nos Estados Unidos.
No Brasil, dos muitos artistas atuantes, a arquiteta Tania Fraga e a dupla Daniela Kutschat e Rejane Cantoni vêm se destacando, especialmente pelo interesse na relação do corpo com interfaces (luvas, óculos etc) e ambientes de outras dimensões. Tania Fraga, cuja obra se destaca nacional e internacionalmente, vem se dedicando à expansão e à consolidação da arte computacional no país, ao criar uma série de ambientes imersivos e virtuais. Apaixonada pela matemática, ela mesma estuda e faz a programação de suas obras, muitas vezes subvertendo os códigos para propor novas estéticas e/ou objetos possíveis apenas no mundo virtual, como os quarténios, objetos complexos dessa ciência. Entre seus trabalhos mais recentes estão: Fragmentos (2007/2008), obra-programa em inteligência artificial e esterioscopia (com óculos 3D) e Caracolomóbile, uma instalação interativa que será realizada durante um voo parabólico, dentro das atividades de pesquisa do grupo Space Art.
Já o Projeto OP_ERA, desenvolvido desde 1999 pelas artistas Daniela Kutschat e Rejane Cantoni, compreende uma série de ferramentas e ambientes de interação e imersão onde o corpo e a máquina entrelaçam-se em experiências simbióticas que exploram dimensões do espaço simultaneamente a sensações cognitivas. A primeira implementação da série é o espetáculo OP_ERA, realizado em 2001, durante a (extinta) mostra Dança Brasil 2001, do Centro Cultural Banco do Brasil, no Rio de Janeiro. Concebido para a caixa preta do teatro, a plataforma de interação, as quatro telas de projeção e a malha de sensores transformou o palco num cubo sensível apenas às interferências da bailarina. Nas implementações seguintes do projeto, esse “cubo” seria “montado” e “remontado” de diversos modos, explorando relações específicas. Diferentes da primeira em um aspecto fundamental, as instalações seguintes se colocavam abertas à participação de qualquer um que se aventurasse a perceber mundos de outras dimensões, possíveis apenas com a ajuda dessas maravilhosas ferramentas artificiais.
Dançando números, figuras e funções
E no caso da dança? Qual o papel que um determinado conceito matemático pode ter na composição de uma coreografia? Que modos diferenciados de organização coreográfica se configuram a partir da presença de conceitos abstratos? Da mesma forma que a história da arte, a evolução da dança também pode ser pensada pelo ângulo da matemática. Coreógrafos a utilizam para criar composições que, por sua vez, produzem desenhos espaciais, implementando nas coreografias e na estrutura de gestos dos bailarinos, por exemplo, as ideias de harmonia e simetria, tão presentes no balé clássico.
No passado, Oskar Schlemmer (1888-1943), dedicou os anos de 1916 a 1922 ao desenvolvimento do Balé Triádico, uma peça na qual a geometrização do corpo definia a dança. No palco da Escola Bauhaus, Schlemmer continuou trabalhando no modelo de uma figura humana determinado por fórmulas geométricas e matemáticas. Nos seus workshops, os participantes faziam máscaras e figurinos e, os estudos do movimento, da mecânica, da óptica e da acústica eram requisitos para o trabalho cênico. Em termos estéticos, um parente próximo desse artista incrível seria o não menos incrível Alwin Nicolais.
Mas as aproximações e relações entre dança e matemática vão além. Podemos observá-las na obra do americano Merce Cunningham com a utilização do acaso – através de sorteios e do i-ching – como operação de composição; na coreografia The Moebius Strip (2001), do suíço Gilles Jobin, no qual a fita de moebius é o mote da obra; na lógica cumulativa e métrica de Accumulation, da americana Trisha Brown, entre outros tantos exemplos. No Brasil, o grupo Cena 11 , em sua mais recente coreografia, Pequenas Frestas de Ficção Sobre Realidade Insistente (2007), utiliza a formação e reconhecimento de padrões para a elaboração de sua dança. O Clube Ur=hor (lê-se ‘U’ de ‘r’ é igual à ‘H’ ‘zero’ de ‘r’), cujo nome significa a fórmula de expansão das galáxias, com a obra Prop. Posição #1, necessário a posteriori, dirigida por Adriana Banana (MG), é outra que apresenta questões ligadas ao espaço, desconcertando-o.
Arteciência
Quando começamos a mapear as áreas de pesquisa artística e científica surgidas a partir das relações entre a dança e a matemática identificamos de imediato três grandes eixos: 1) o ensino da matemática com o emprego de recursos do corpo e da dança; 2) experiências/projetos artísticos e científicos (obras coreográficas, processos baseados em motion capture, softwares para criação, projetos artísticos com utilização de vídeos e sensores etc) e; 3) projetos de notação do movimento analógicos e digitais (desenvolvimento de interfaces e softwares específicos).
O primeiro eixo é formado basicamente por pesquisas voltadas ao desenvolvimento e à aplicação de metodologia para ensino da matemática com recursos corporais. O artigo Dance and mathematics: power of novelty in the teaching of mathematics, de Anne Watson, mostra como a parceria entre as duas áreas são poderosas para o ensino-aprendizagem. Ao combinar ambos os campos, é possível experimentar sensações físicas de conceitos matemáticos abstratos. “Para muitas pessoas, ter uma experiência sinestésica de uma ideia abstrata é extremamente útil para o entendimento do que esse conceito significa”, diz o educador e matemático Karl Schaffer, da John F. Kennedy Center for the Performing Arts. O link http://www.sciencedaily.com/videos/2008/0503-do_the_math_dance.htm é um registro da experiência de como matemáticos e coreógrafos usam a dança para criar “mathdances”, problemas matemáticos para serem resolvidos com criação de pequenas danças. Tal campo é inexplorado e praticamente inexistente no Brasil.
O segundo eixo engloba uma grande quantidade e diversidade de processos, experiências, projetos e produtos artísticos, científicos (predominantemente híbridos) interfaceando arte & ciência. Aqui existem excelentes experiências como a do já citado grupo Cena 11, que vem aprimorando a relação entre dança e tecnologia ao investir no desenvolvimento de sistemas de interação entre movimento e modificação do ambiente via interfaces físico/digitais. Fora do país, as pesquisas entre artistas e cientistas proliferam e vale citar os projetos de Scott De Lahunta, Emio Greco, William Forsythe e Siobhan Davies Dance Company, entre outros.
Já o terceiro eixo, extremamente relacionado ao anterior, tem foco no desafio de criar notações eficientes das danças que são produzidas, visto que sua matéria de composição é fugaz. Embora as relações entre dança e registro possam ser datadas a partir do começo da década de 1960, período no qual os primeiros softwares para notação do movimento foram desenvolvidos – sabemos que os laços entre essas duas áreas são bem anteriores, como podemos observar em registros analógicos nos séculos XVII e XVIII. A cultura computacional provoca uma expansão nesse campo e, ao mesmo tempo, novos desafios. Um desses desafios se refere à árdua tarefa de criar “partituras” coreográficas capazes de, ao mesmo tempo, registrar e transmitir instruções para decodificação e reconstrução de danças e/ou estados corporais. Além disso, conforme as pesquisas mais recentes vêm mostrando, trata-se de favorecer a criação de novas obras e de novos materiais coreográficos.
A pesquisa A dança como tessitura do espaço (1999), da pesquisadora Dulce Aquino, é uma das únicas desenvolvidas no Brasil cujo foco foi a relação entre dança e espaço, sendo este último considerado um elemento da composição coreográfica. A autora chama a atenção para a configuração espacial enquanto topos de representação cênica. Esse ponto de vista introduz um outro olhar para a dança, agora observada como organizações simbólicas espaço-temporais. Na medida que conceitos matemáticos são utilizados para compor séries e sequências de movimentos, novas propostas de ocupação do espaço são geradas.
Podemos verificar diferentes concepções de espaço/espacialidade na interface dança e espaço como as encontradas no balé clássico, na dança moderna e na dança contemporânea. O balé se estrutura de acordo com o pensamento político-filosófico-estético de sua época, quando era novidade. As obras enquadradas na caixa preta do teatro estavam de acordo com uma utilização do espaço que destacava algumas figuras centralmente, os primeiros bailarinos (o rei e a rainha), atribuindo-lhes maior importância. A partir deles, os outros componentes vão perdendo o valor à medida em que a posição que ocupam se afasta deles. Ao redor da cena, uma série de bailarinas se organiza como uma moldura: iguais e em sincronia dão a ideia de um corpo coletivo, sem individualidades e, nesse caso, ainda menos importante. Todo o conjunto compõe a situação hierárquica que organiza essa dança. O espaço em que ocorre o balé é estático, de acordo com a concepção do físico Isaac Newton. Um espaço absoluto, rígido, fixo e independente do tempo e da matéria. Quer dizer, não muda nem com o passar das horas, nem com as diferentes composições que possa vir a ter. Por isso as relações que ali se dão não o modificam.
Segundo Aquino, “o espaço cênico do palco italiano é o espaço absoluto onde ações são engendradas em uma representação do mundo natural sob imposição da perspectiva tridimensional. Esta representação estava submetida às origens da visão renascentista de modelo gráfico linear. As ações se desenvolvem sobre um plano frontal contra um fundo, como um telão mais ou menos realista. A composição geral a partir da percepção do espectador corresponde às composições dos pintores renascentistas“.
Já na concepção moderna de espaço, é a teoria da relatividade de Einstein que ocupa um lugar de destaque. Nessa concepção, o espaço não é separado do tempo, que é a coleção de todos os instantes. O espaçotempo seria igual a lugares e instantes possíveis. No paralelo com a dança, na década de 40, o coreógrafo Merce Cunningham e o compositor John Cage começaram a pensar, respectivamente, numa dança e numa música diferentes e em como poderiam co-habitar o mesmo espaço, sem hierarquias fixas. Nessa proposta, o palco não teria mais centro, não teria lugar ou bailarino mais importante que outro, e a quarta parede não seria mais referência para a frente. Qualquer direção pode ser a frente, que agora se relaciona diretamente ao corpo do bailarino, que constroi o espaço a partir dele e da dança que realiza. Obras como Beach Birds (1991), CRWDSPCR (1993), Biped (1999), entre dezenas de outras, revelam esse tipo de organização e esse modo de entender a relação entre corpo e espaço. No caso de “Biped”, os bailarinos dançam com holografias gigantes, resultado de processos baseados em motion capture e tratamentos computacionais.
A partir da recente evolução científica e do desenvolvimento e implementação de dispositivos digitais e tecnológicos, a dança vem construindo novas experiências artísticas que chamam a atenção para a construção de outras dimensões do espaço.
Depois de ter trabalhado com o Joffrey Ballett e o Nederlands Dans Theater, William Forsythe foi diretor do Ballett Frankfurt entre os anos de 1994 a 2004, período em que coreografou peças como Limb’s Theorem (1991), The loss of small Detail (1991), Alie/naction (1992), Eidos:Telos (1995), Endless House (1999) e Kammer/Kammer (2000). Como disse a crítica de dança do The Guardian Judith Mackrell, foi lá que ele aperfeiçoou o estilo que define como “uma estética de perfeita desordem (grifo meu), que rompe radicalmente com as normas do balé, desorganiza os eixos de equilíbrio e estraçalha o espaço, encorajando os bailarinos a violar todos os códigos do gênero, cortesia e romance“. A partir de 2004, o coreógrafo passa a trabalhar com seu próprio grupo, The Forsythe Company, entre as cidades de Dresden e Frankfurt.
O CD-ROM Improvisation Technologies – A Tool for the Analytical Dance Eye, produzido pelo ZKM (Center for Art and Media Karlsruhe) e lançado em 1999 é uma importante ferramenta, como o próprio nome diz, para sensibilizar o olhar e a cognição para a lógica de organização de movimentos deste pensador da dança. Eis aqui um exemplo onde memória e criação se confundem, na medida em que o CD registra facetas deste pensamento de dança e favorece o aprendizado do repertório e, para além disso, colabora com o entendimento de um modo operacional que pode se utilizado em futuras improvisações que geram novos trabalhos. O CD contém explicações e demonstrações em vídeo sobre alguns métodos de improvisação que Forsythe utiliza para compor, descrito por ele com suportes gráficos e animações, entre outros modos de visualização.
Sobre a excelente obra Eidos:Telos, a crítica de dança d’O Estado de São Paulo Helena Katz escreveu no artigo Dança usa a matemática para estrangular corações, publicado em 1996, “Forsythe pensa a dança por algoritmo (tradução matemática da informação) – por isso, ele é único. Não organiza movimentos em espaços, constroi o espaço com ou sem movimentos. Uma empreitada dura. Para ele, seus bailarinos e seu público. Todos precisamos aprender que Forsythe coreografa como quem programa bits e não como quem toma como modelo esses nossos corpos à base de carbono. [...] A cabeça de Forsythe lê o mundo por algoritmos. Ele pára, aponta uma árvore que o outono começa a desfolhar e comenta: ‘veja como é claro, isso é puro algoritmo’. Para ele, o mundo que se mexe evolui porque são essas estruturas algorítmicas que se reproduzem evolutivamente. E, como quase tudo que tem mobilidade pode ser ‘algoritmável’, isto é, pode ser traduzido matematicamente, o mistério, para ele, está em desvendar esse modo de agir da matemática“.
Já a coreógrafa Anne Teresa De Keersmaeker, diretora da companhia Rosas (foto), residente em Bruxelas, na Bélgica, se destaca pelo modo como propõe a relação entre dança e música, permeada por uma lógica especial. O trabalho Fase, four movements, realizado em 1982, para a música de Steve Reich, teve um impacto explosivo no cenário internacional de dança. Desde então, a coreógrafa vem criando um conjunto de coreografias que vem se tornando referência fundamental para a arte contemporânea. No artigo Fibonacci Fragments, Anne Teresa de Keersmaeker and music, Jean-Luc Plouvier (2002) conta que no início, em 1983, ela e Thierry De Mey inventaram um jeito novo de co-relacioná-las (música e dança). O quarteto de bailarinas nas cadeiras, que pode ser visto no filme 35mm (comercializado em DVD) Rosas danst Rosas, de 1997, é outro exemplo desse relacionamento: ali, a coreografia está associada à música que, por sua vez, foi derivada de um “number game“. Os pequenos gestos põem em movimento poses eróticas, como cobrir um ombro desnudo. Essa experiência, segundo Plouvier, inicial na carreira da então jovem coreógrafa ajudou a sintonizar uma história de fascinação entre música e dança que suas obras não cansam de explorar e encantar audiências.
Para a obra Achterland, de 1990, a coreógrafa utilizou a série de Fibonacci na composição das frases de movimento. A Sequência de Fibonacci foi traçada por Leonardo de Pisa para descrever o crescimento de uma população de coelhos: 0, 1, 1, 2, 3, 5, 8, 13, 21, 34, 55, 89, 144, 233, 377, 610, 987… Relacionado a essa série, o número de ouro (1,618…) ou proporção áurea também representa uma constante de crescimento. Entre 1942 e 48, o arquiteto Le Corbusier utilizou a razão de ouro, os números de Fibonacci e as dimensões médias do corpo humano para construir seu modulor, um sistema de medições usado para estabelecer harmonia em projetos arquitetônicos.
A presença dos conceitos de algoritmo e da razão áurea na dança de Forsythe e de Anne Teresa De Keersmaeker, respectivamente, produzem estéticas diferenciadas. A aplicação de conceitos matemáticos em um outro domínio tem consequências estético-espaciais, o que por sua vez, exige a construção de um outro corpo. É a presença dos conceitos matemáticos que produz as estéticas desses coreógrafos. Nesse sentido, cabe perguntar como se opera o transporte de um conceito de um domínio para outro? Que operações e transformações estão implicadas nessa transferência? De que modo essa operação tradutória se relaciona com a produção estética coreográfica?
De fato, a matemática e os matemáticos, a arte e os artistas se misturam o tempo todo nas mais diversificadas práticas. Seus territórios se cruzam constantemente através da exploração de conceitos como os de topologia, caos, belo, proporção, forma, simetria, espaço, ritmo, fluxo, (des)continuidade, entre tantos outros. Na história da pintura, por exemplo, a construção da perspectiva está entre os mais importantes. Mais recentemente, vale recordar do pintor catalão Salvador Dalí (1904-1989), que tinha como fiel escudeiro o matemático Thomas Banchoff, pesquisador da Brown University, em Providence, nos Estados Unidos.
No Brasil, dos muitos artistas atuantes, a arquiteta Tania Fraga e a dupla Daniela Kutschat e Rejane Cantoni vêm se destacando, especialmente pelo interesse na relação do corpo com interfaces (luvas, óculos etc) e ambientes de outras dimensões. Tania Fraga, cuja obra se destaca nacional e internacionalmente, vem se dedicando à expansão e à consolidação da arte computacional no país, ao criar uma série de ambientes imersivos e virtuais. Apaixonada pela matemática, ela mesma estuda e faz a programação de suas obras, muitas vezes subvertendo os códigos para propor novas estéticas e/ou objetos possíveis apenas no mundo virtual, como os quarténios, objetos complexos dessa ciência. Entre seus trabalhos mais recentes estão: Fragmentos (2007/2008), obra-programa em inteligência artificial e esterioscopia (com óculos 3D) e Caracolomóbile, uma instalação interativa que será realizada durante um voo parabólico, dentro das atividades de pesquisa do grupo Space Art.
Já o Projeto OP_ERA, desenvolvido desde 1999 pelas artistas Daniela Kutschat e Rejane Cantoni, compreende uma série de ferramentas e ambientes de interação e imersão onde o corpo e a máquina entrelaçam-se em experiências simbióticas que exploram dimensões do espaço simultaneamente a sensações cognitivas. A primeira implementação da série é o espetáculo OP_ERA, realizado em 2001, durante a (extinta) mostra Dança Brasil 2001, do Centro Cultural Banco do Brasil, no Rio de Janeiro. Concebido para a caixa preta do teatro, a plataforma de interação, as quatro telas de projeção e a malha de sensores transformou o palco num cubo sensível apenas às interferências da bailarina. Nas implementações seguintes do projeto, esse “cubo” seria “montado” e “remontado” de diversos modos, explorando relações específicas. Diferentes da primeira em um aspecto fundamental, as instalações seguintes se colocavam abertas à participação de qualquer um que se aventurasse a perceber mundos de outras dimensões, possíveis apenas com a ajuda dessas maravilhosas ferramentas artificiais.
Dançando números, figuras e funções
E no caso da dança? Qual o papel que um determinado conceito matemático pode ter na composição de uma coreografia? Que modos diferenciados de organização coreográfica se configuram a partir da presença de conceitos abstratos? Da mesma forma que a história da arte, a evolução da dança também pode ser pensada pelo ângulo da matemática. Coreógrafos a utilizam para criar composições que, por sua vez, produzem desenhos espaciais, implementando nas coreografias e na estrutura de gestos dos bailarinos, por exemplo, as ideias de harmonia e simetria, tão presentes no balé clássico.
No passado, Oskar Schlemmer (1888-1943), dedicou os anos de 1916 a 1922 ao desenvolvimento do Balé Triádico, uma peça na qual a geometrização do corpo definia a dança. No palco da Escola Bauhaus, Schlemmer continuou trabalhando no modelo de uma figura humana determinado por fórmulas geométricas e matemáticas. Nos seus workshops, os participantes faziam máscaras e figurinos e, os estudos do movimento, da mecânica, da óptica e da acústica eram requisitos para o trabalho cênico. Em termos estéticos, um parente próximo desse artista incrível seria o não menos incrível Alwin Nicolais.
Mas as aproximações e relações entre dança e matemática vão além. Podemos observá-las na obra do americano Merce Cunningham com a utilização do acaso – através de sorteios e do i-ching – como operação de composição; na coreografia The Moebius Strip (2001), do suíço Gilles Jobin, no qual a fita de moebius é o mote da obra; na lógica cumulativa e métrica de Accumulation, da americana Trisha Brown, entre outros tantos exemplos. No Brasil, o grupo Cena 11 , em sua mais recente coreografia, Pequenas Frestas de Ficção Sobre Realidade Insistente (2007), utiliza a formação e reconhecimento de padrões para a elaboração de sua dança. O Clube Ur=hor (lê-se ‘U’ de ‘r’ é igual à ‘H’ ‘zero’ de ‘r’), cujo nome significa a fórmula de expansão das galáxias, com a obra Prop. Posição #1, necessário a posteriori, dirigida por Adriana Banana (MG), é outra que apresenta questões ligadas ao espaço, desconcertando-o.
Arteciência
Quando começamos a mapear as áreas de pesquisa artística e científica surgidas a partir das relações entre a dança e a matemática identificamos de imediato três grandes eixos: 1) o ensino da matemática com o emprego de recursos do corpo e da dança; 2) experiências/projetos artísticos e científicos (obras coreográficas, processos baseados em motion capture, softwares para criação, projetos artísticos com utilização de vídeos e sensores etc) e; 3) projetos de notação do movimento analógicos e digitais (desenvolvimento de interfaces e softwares específicos).
O primeiro eixo é formado basicamente por pesquisas voltadas ao desenvolvimento e à aplicação de metodologia para ensino da matemática com recursos corporais. O artigo Dance and mathematics: power of novelty in the teaching of mathematics, de Anne Watson, mostra como a parceria entre as duas áreas são poderosas para o ensino-aprendizagem. Ao combinar ambos os campos, é possível experimentar sensações físicas de conceitos matemáticos abstratos. “Para muitas pessoas, ter uma experiência sinestésica de uma ideia abstrata é extremamente útil para o entendimento do que esse conceito significa”, diz o educador e matemático Karl Schaffer, da John F. Kennedy Center for the Performing Arts. O link http://www.sciencedaily.com/videos/2008/0503-do_the_math_dance.htm é um registro da experiência de como matemáticos e coreógrafos usam a dança para criar “mathdances”, problemas matemáticos para serem resolvidos com criação de pequenas danças. Tal campo é inexplorado e praticamente inexistente no Brasil.
O segundo eixo engloba uma grande quantidade e diversidade de processos, experiências, projetos e produtos artísticos, científicos (predominantemente híbridos) interfaceando arte & ciência. Aqui existem excelentes experiências como a do já citado grupo Cena 11, que vem aprimorando a relação entre dança e tecnologia ao investir no desenvolvimento de sistemas de interação entre movimento e modificação do ambiente via interfaces físico/digitais. Fora do país, as pesquisas entre artistas e cientistas proliferam e vale citar os projetos de Scott De Lahunta, Emio Greco, William Forsythe e Siobhan Davies Dance Company, entre outros.
Já o terceiro eixo, extremamente relacionado ao anterior, tem foco no desafio de criar notações eficientes das danças que são produzidas, visto que sua matéria de composição é fugaz. Embora as relações entre dança e registro possam ser datadas a partir do começo da década de 1960, período no qual os primeiros softwares para notação do movimento foram desenvolvidos – sabemos que os laços entre essas duas áreas são bem anteriores, como podemos observar em registros analógicos nos séculos XVII e XVIII. A cultura computacional provoca uma expansão nesse campo e, ao mesmo tempo, novos desafios. Um desses desafios se refere à árdua tarefa de criar “partituras” coreográficas capazes de, ao mesmo tempo, registrar e transmitir instruções para decodificação e reconstrução de danças e/ou estados corporais. Além disso, conforme as pesquisas mais recentes vêm mostrando, trata-se de favorecer a criação de novas obras e de novos materiais coreográficos.
Movimento, espaço, tempo
A pesquisa A dança como tessitura do espaço (1999), da pesquisadora Dulce Aquino, é uma das únicas desenvolvidas no Brasil cujo foco foi a relação entre dança e espaço, sendo este último considerado um elemento da composição coreográfica. A autora chama a atenção para a configuração espacial enquanto topos de representação cênica. Esse ponto de vista introduz um outro olhar para a dança, agora observada como organizações simbólicas espaço-temporais. Na medida que conceitos matemáticos são utilizados para compor séries e sequências de movimentos, novas propostas de ocupação do espaço são geradas.
Podemos verificar diferentes concepções de espaço/espacialidade na interface dança e espaço como as encontradas no balé clássico, na dança moderna e na dança contemporânea. O balé se estrutura de acordo com o pensamento político-filosófico-estético de sua época, quando era novidade. As obras enquadradas na caixa preta do teatro estavam de acordo com uma utilização do espaço que destacava algumas figuras centralmente, os primeiros bailarinos (o rei e a rainha), atribuindo-lhes maior importância. A partir deles, os outros componentes vão perdendo o valor à medida em que a posição que ocupam se afasta deles. Ao redor da cena, uma série de bailarinas se organiza como uma moldura: iguais e em sincronia dão a ideia de um corpo coletivo, sem individualidades e, nesse caso, ainda menos importante. Todo o conjunto compõe a situação hierárquica que organiza essa dança. O espaço em que ocorre o balé é estático, de acordo com a concepção do físico Isaac Newton. Um espaço absoluto, rígido, fixo e independente do tempo e da matéria. Quer dizer, não muda nem com o passar das horas, nem com as diferentes composições que possa vir a ter. Por isso as relações que ali se dão não o modificam.
Segundo Aquino, “o espaço cênico do palco italiano é o espaço absoluto onde ações são engendradas em uma representação do mundo natural sob imposição da perspectiva tridimensional. Esta representação estava submetida às origens da visão renascentista de modelo gráfico linear. As ações se desenvolvem sobre um plano frontal contra um fundo, como um telão mais ou menos realista. A composição geral a partir da percepção do espectador corresponde às composições dos pintores renascentistas“.
Já na concepção moderna de espaço, é a teoria da relatividade de Einstein que ocupa um lugar de destaque. Nessa concepção, o espaço não é separado do tempo, que é a coleção de todos os instantes. O espaçotempo seria igual a lugares e instantes possíveis. No paralelo com a dança, na década de 40, o coreógrafo Merce Cunningham e o compositor John Cage começaram a pensar, respectivamente, numa dança e numa música diferentes e em como poderiam co-habitar o mesmo espaço, sem hierarquias fixas. Nessa proposta, o palco não teria mais centro, não teria lugar ou bailarino mais importante que outro, e a quarta parede não seria mais referência para a frente. Qualquer direção pode ser a frente, que agora se relaciona diretamente ao corpo do bailarino, que constroi o espaço a partir dele e da dança que realiza. Obras como Beach Birds (1991), CRWDSPCR (1993), Biped (1999), entre dezenas de outras, revelam esse tipo de organização e esse modo de entender a relação entre corpo e espaço. No caso de “Biped”, os bailarinos dançam com holografias gigantes, resultado de processos baseados em motion capture e tratamentos computacionais.
A partir da recente evolução científica e do desenvolvimento e implementação de dispositivos digitais e tecnológicos, a dança vem construindo novas experiências artísticas que chamam a atenção para a construção de outras dimensões do espaço.
Matemática para estrangular corações
Depois de ter trabalhado com o Joffrey Ballett e o Nederlands Dans Theater, William Forsythe foi diretor do Ballett Frankfurt entre os anos de 1994 a 2004, período em que coreografou peças como Limb’s Theorem (1991), The loss of small Detail (1991), Alie/naction (1992), Eidos:Telos (1995), Endless House (1999) e Kammer/Kammer (2000). Como disse a crítica de dança do The Guardian Judith Mackrell, foi lá que ele aperfeiçoou o estilo que define como “uma estética de perfeita desordem (grifo meu), que rompe radicalmente com as normas do balé, desorganiza os eixos de equilíbrio e estraçalha o espaço, encorajando os bailarinos a violar todos os códigos do gênero, cortesia e romance“. A partir de 2004, o coreógrafo passa a trabalhar com seu próprio grupo, The Forsythe Company, entre as cidades de Dresden e Frankfurt.
O CD-ROM Improvisation Technologies – A Tool for the Analytical Dance Eye, produzido pelo ZKM (Center for Art and Media Karlsruhe) e lançado em 1999 é uma importante ferramenta, como o próprio nome diz, para sensibilizar o olhar e a cognição para a lógica de organização de movimentos deste pensador da dança. Eis aqui um exemplo onde memória e criação se confundem, na medida em que o CD registra facetas deste pensamento de dança e favorece o aprendizado do repertório e, para além disso, colabora com o entendimento de um modo operacional que pode se utilizado em futuras improvisações que geram novos trabalhos. O CD contém explicações e demonstrações em vídeo sobre alguns métodos de improvisação que Forsythe utiliza para compor, descrito por ele com suportes gráficos e animações, entre outros modos de visualização.
Sobre a excelente obra Eidos:Telos, a crítica de dança d’O Estado de São Paulo Helena Katz escreveu no artigo Dança usa a matemática para estrangular corações, publicado em 1996, “Forsythe pensa a dança por algoritmo (tradução matemática da informação) – por isso, ele é único. Não organiza movimentos em espaços, constroi o espaço com ou sem movimentos. Uma empreitada dura. Para ele, seus bailarinos e seu público. Todos precisamos aprender que Forsythe coreografa como quem programa bits e não como quem toma como modelo esses nossos corpos à base de carbono. [...] A cabeça de Forsythe lê o mundo por algoritmos. Ele pára, aponta uma árvore que o outono começa a desfolhar e comenta: ‘veja como é claro, isso é puro algoritmo’. Para ele, o mundo que se mexe evolui porque são essas estruturas algorítmicas que se reproduzem evolutivamente. E, como quase tudo que tem mobilidade pode ser ‘algoritmável’, isto é, pode ser traduzido matematicamente, o mistério, para ele, está em desvendar esse modo de agir da matemática“.
Já a coreógrafa Anne Teresa De Keersmaeker, diretora da companhia Rosas (foto), residente em Bruxelas, na Bélgica, se destaca pelo modo como propõe a relação entre dança e música, permeada por uma lógica especial. O trabalho Fase, four movements, realizado em 1982, para a música de Steve Reich, teve um impacto explosivo no cenário internacional de dança. Desde então, a coreógrafa vem criando um conjunto de coreografias que vem se tornando referência fundamental para a arte contemporânea. No artigo Fibonacci Fragments, Anne Teresa de Keersmaeker and music, Jean-Luc Plouvier (2002) conta que no início, em 1983, ela e Thierry De Mey inventaram um jeito novo de co-relacioná-las (música e dança). O quarteto de bailarinas nas cadeiras, que pode ser visto no filme 35mm (comercializado em DVD) Rosas danst Rosas, de 1997, é outro exemplo desse relacionamento: ali, a coreografia está associada à música que, por sua vez, foi derivada de um “number game“. Os pequenos gestos põem em movimento poses eróticas, como cobrir um ombro desnudo. Essa experiência, segundo Plouvier, inicial na carreira da então jovem coreógrafa ajudou a sintonizar uma história de fascinação entre música e dança que suas obras não cansam de explorar e encantar audiências.
Para a obra Achterland, de 1990, a coreógrafa utilizou a série de Fibonacci na composição das frases de movimento. A Sequência de Fibonacci foi traçada por Leonardo de Pisa para descrever o crescimento de uma população de coelhos: 0, 1, 1, 2, 3, 5, 8, 13, 21, 34, 55, 89, 144, 233, 377, 610, 987… Relacionado a essa série, o número de ouro (1,618…) ou proporção áurea também representa uma constante de crescimento. Entre 1942 e 48, o arquiteto Le Corbusier utilizou a razão de ouro, os números de Fibonacci e as dimensões médias do corpo humano para construir seu modulor, um sistema de medições usado para estabelecer harmonia em projetos arquitetônicos.
A presença dos conceitos de algoritmo e da razão áurea na dança de Forsythe e de Anne Teresa De Keersmaeker, respectivamente, produzem estéticas diferenciadas. A aplicação de conceitos matemáticos em um outro domínio tem consequências estético-espaciais, o que por sua vez, exige a construção de um outro corpo. É a presença dos conceitos matemáticos que produz as estéticas desses coreógrafos. Nesse sentido, cabe perguntar como se opera o transporte de um conceito de um domínio para outro? Que operações e transformações estão implicadas nessa transferência? De que modo essa operação tradutória se relaciona com a produção estética coreográfica?
Caro leitor,
Qual é a sua opinão sobre este assunto?
Gostaria de acrescenta algo?
Participe, deixe seu comentário.
Referência:
Site: Idanca.net, por Maíra Spanghero, 14/05/2009
Montagem: Matheusmáthica
Nenhum comentário:
Postar um comentário