sábado, 15 de outubro de 2011

Educação matemática: entrevista de Paulo Freire ao Prof. Ubiratan D'Ambrosio. Parte Escrita

Maria, Paulo e Ubiratan
Entrevista de Paulo Freire a Ubiratan D'Ambrósio e Maria do Carmo Domite Mendonça, na qual Freire fala sobre sobre a "educação matemática"

  

Maria do Carmo - Estamos aqui reunidos para uma conversa, um bate papo informal, com o Professor Paulo Freire e o Professor Ubiratan D'Ambrosio, sobre educação e educação matemática.

D'Ambrosio - Devo dizer que para mim é um privilégio raro poder entrevistar o mestre. Formalmente, nunca fui seu aluno, mas sou daquele exército de educadores do mundo inteiro que se consideram discípulos de Paulo Freire. Ter a oportunidade desta conversa é para mim uma grande honra.

Paulo Freire - Para mim também. Sobretudo compreendendo, como nós três aqui compreendemos, a continuidade desta conversa dentro de algum tempo mais na Espanha, diante de um grande número de matemáticos, de educadores que se metem com os problemas do ensino da matemática, da compreensão da matemática. Para mim também é uma grande satisfação estar nessa conversa e gostaria que ela até tomasse corpo imediatamente.

D'Ambrosio - Hoje nós todos reconhecemos o Paulo Freire grande filósofo que inspira uma serie de medidas novas em educação, propostas. É o nosso filósofo da educação. No inicio, há muitos anos, quando você começou a sua carreira, a sua grande preocupação parece ter sido, claro educação em geral, mas sempre se fala no Paulo Freire como ensinando, alfabetizando, ensinando a ler. Existe claro uma preocupação muito grande em todo seu discurso com a importância de o indivíduo se expressar, saber ler, participar do mundo. Eu pergunto: desde aquele momento até hoje, você vê uma importância equivalente em ele saber participar matematicamente do mundo. Você vê um equivalente ao literacy, uma forma de matheracy? Existe um equivalente matemático à alfabetização na sua obra?

Paulo Freire - Essa é uma pergunta primeira. É a primeira vez que eu me defronto com essa pergunta e eu acho que ela tem sentido. Tem sentido como uma pergunta não apenas feita a mim, mas feita a nós todos. Confesso que na época eu não pensei nisso. Não iria eu agora mentir e dizer ah, já naqueles anos, há quarenta anos atrás, eu já vivia pensando nisso. Não, na verdade eu não pensei nisso. Mas eu hoje entendo isso perfeitamente. Eu não tenho dúvida nenhuma da importância de qualquer esforço, que não deve inclusive ser um esforço exclusivo do matemático, professor de matemática por exemplo, mas que deveria ser no meu entender um esforço do homem e da mulher, matemático ou físico ou carpinteiro, que é exatamente o esforço de nos reconhecer como corpos conscientes matematicizados. 

Eu não tenho dúvida nenhuma de que a nossa presença no mundo, que implicou indiscutivelmente a invenção do mundo... Eu venho pensando muito que o passo decisivo que nos tornamos capazes de dar, mulheres e homens, foi exatamente o passo em que o suporte em que estávamos virou mundo e a vida que vivíamos virou existência, começou a virar existência. E que nessa passagem, nunca você diria uma fronteira geográfica para a história, mas nessa transição do suporte para o mundo e que se instala a história, é que começa a se instalar a cultura, a linguagem, a invenção da linguagem, o pensamento que não apenas se atenta no objeto que está sendo pensado, mas que já se enriquece da possibilidade de comunicar e comunicar-se. 

Eu acho que nesse momento a gente se transformou também em matemáticos. A vida que vira existência se matematiza. Para mim, e eu volto agora a esse ponto, eu acho que uma preocupação fundamental, não apenas dos matemáticos mas de todos nós, sobretudo dos educadores, a quem cabe certas decifrações do mundo, eu acho que uma das grandes preocupações deveria ser essa: a de propor aos jovens, estudantes, alunos homens do campo, que antes e ao mesmo em que descobrem que 4 por 4 são 16, descobrem também que há uma forma matemática de estar no mundo. 

Eu dizia outro dia aos alunos que quando a gente desperta, já caminhando para o banheiro, a gente já começa a fazer cálculos matemáticos. Quando a gente olha o relógio, por exemplo, a gente já estabelece a quantidade de minutos que a gente tem para, se acordou mais cedo, se acordou mais tarde, para saber exatamente a hora em que vai chegar à cozinha, que vai tomar o café da manhã, a hora que vai chegar o carro que vai nos levar ao seminário, para chegar às oito. Quer dizer, ao despertar os primeiros movimentos, lá dentro do quarto, são movimentos matematicizados. Para mim essa deveria ser uma das preocupações, a de mostrar a naturalidade do exercício matemático. 

Lamentavelmente, o que a gente vem fazendo, e eu sou um brasileiro que paga, paga caro... Eu não tenho dúvida nenhuma que dentro de mim há escondido um matemático que não teve chance de acordar, e eu vou morrer sem ter despertado esse matemático, que talvez pudesse ter sido bom. 

Bem, uma coisa eu acho, que se esse matemático que existe dormindo em mim tivesse despertado, de uma coisa eu estou certo, ele seria um bom professor de matemática. Mas não houve isso, não ocorreu, e eu pago hoje muito caro, porque na minha geração de brasileiras e brasileiros lá no Nordeste, quando a gente falava em matemática, era um negócio para deuses ou gênios. Se fazia uma concessão para o sujeito genial que podia fazer matemática sem ser deus. 

E com isso, quantas inteligências críticas, quantas curiosidades, quantos indagadores, quanta capacidade abstrativa para poder ser concreta, perdemos. Eu acho que nesse congresso, uma das coisas que eu faria era, não um apelo, mas eu diria aos congressistas, professores de matemática de várias partes do mundo, que ao mesmo tempo em que ensinam que 4 vezes 4 são 16 ou raiz quadrada e isso e aquilo outro, despertem os alunos para que se assumam como matemáticos.

D"Ambrosio - Em todo o seu discurso, a sua teorização, a sua prática, se vê a importância política da aquisição da linguagem. Você diz que o homem para ser livre tem que ser capaz de se expressar, tem que ser capaz de ler, ser capaz de discursar. Você vê alguma coisa equivalente no domínio da matemática? 

Paulo Freire - Eu acho que indiscutivelmente essa possível alfabetização da matemática, uma mate-alfabetização, math-literacy, eu não tenho dúvida nenhuma que isso ajudaria a própria criação da cidadania. E vou dizer como eu vejo, e não como se deve ver. Eu falo como eu vejo. Eu acho que no momento em que você traduz a naturalidade da matemática como uma condição de estar no mundo, você trabalha contra um certo elitismo com que os estudos matemáticos, mesmo contra a vontade de alguns matemáticos, tem. 

Quer dizer, você democratiza a possibilidade da naturalidade da matemática, e isso é cidadania. E quando você viabiliza a convivência com a matemática, não há dúvida que você ajuda a solução de inúmeras questões que ficam aí às vezes entulhadas, precisamente por falta de um mínimo de competência sobre a matéria. E porque não está havendo isso? 

Porque a compreensão da matemática virou uma coisa profundamente refinada, quando na verdade não é e não deveria ser. Eu não quero com isso dizer que os estudos matemáticos jamais devessem ter a profundidade e a rigorosidade que eles tem que ter. Como o filosofo tem também que ser rigoroso, o biólogo, não é isso que eu digo. Mas o que eu digo é o seguinte: na medida em que você não faz simplismo, mas torna simples, a compreensão da existência matemática da existência humana, aí não há dúvida nenhuma que você perceberá a importância dessa compreensão matemática, tão grande quanto a linguagem.

Maria do Carmo - Essa é a matemática natural, a matemática que fala da quantificação natural. Então o menino pequeno tem alguma coisa a falar, por exemplo sobre a multiplicação como ele entende, e o professor não vê isso como sendo válido. É uma outra visão de matemática.

Paulo Freire  - Isso não se dá apenas com a matemática, isso se dá com a presença do homem e da mulher no mundo. Eu acho que tem muito que ver com um certo desprestígio do senso comum. Isso tem muito que ver com a postura elitista da escola, relegando toda a contribuição que o aluno possa dar à escola. No fundo, é a super-valoração do conhecimento chamado acadêmico diante da desvalorização do conhecimento comum. É a posição epistemológica segundo a qual entre um e outro conhecimento você tem uma definitiva ruptura. 

No meu entender o que há não é uma ruptura, o que há é uma superação. Uma das coisas que a escola deveria fazer, e eu venho insistindo nisso há 30 anos ou mais, e fui muito mal entendido, e ainda hoje continuo a ser, mas no começo fui muito menos entendido, quando eu insistia que o ponto de partida da prática educativa deve ser não a compreensão do mundo que tem o educador e o seu sistema de conhecimento, mas a compreensão do mundo que tem, ou que esteja tendo, o educando. 

A gente parte do que o educando sabe para que o educando possa saber melhor, saber mais e saber o que ainda não sabe. Eu acho que está nesse desrespeito, que é um desrespeito elitista, está na superação desse desrespeito, está no aprofundamento de uma postura democrática, eu acho a superação desse ser.

Maria do Carmo - É um elemento de ordem epistemológica querer que o aluno conheça melhor, mas é um desrespeito.

D"Ambrosio - O aluno vai para a escola para receber.

Paulo Freire  - É isso, e ele inclusive está convencido disso.

D"Ambrosio - Para levar adiante essa nova postura pedagógica é necessário mudar o professor. A maneira como o professor tem sido formado tem sido fundamental, e eu sei que um dos seus projetos atuais é escrever um livro sobre formação de professores. Daria para falar um pouco sobre isso, de uma forma mais dirigida à nossa preocupação, como educadores matemáticos? Como a formação de professores deve ser revitalizada nesse seu pensamento?

Paulo Freire - Eu estou realmente escrevendo um livro agora, que eu espero não seja nem um caderno nem um compêndio, um livro à minha maneira. O título provisório do livro vai ser formação docente e saberes necessários fundamentais à prática educativa crítica. A minha preocupação ao estar escrevendo esse livro é mostrar, às vezes até mais do que saberes, mostrar certas sabedorias indispensáveis a um professor, ou à formação do educador. 
Por exemplo, talvez o primeiro saber que deve virar uma sabedoria e que exatamente a gente incorpora é o seguinte: a prática educativa se funda não apenas na inconclusão ontológica do ser humano, mas na consciência da inconclusão. É em cima desses dois pés, de um lado a minha inconclusão, do outro a minha consciência da inconclusão, é aí que se funda a educação. A educabilidade humana não tem outra explicação senão nesta assunção de minha inconclusão consciente. Como também é ai que se fundamenta a minha esperança. 

Você imagine que incongruência seria que ser inconclusos como somos e conscientes da inconclusão, não nos lançássemos num permanente movimento de procura, de busca. O ser que não procura é aquele que sendo inconcluso não se sabe inconcluso. Exemplo: a jaboticabeira que eu tenho no quintal da casa é inconclusa também, porque o fenômeno da inconclusão é um fenômeno vital, não é exclusivo do ser humano. Mas o nível de inconclusão da jaboticabeira não tem nada a ver com meu nível de inconclusão. Ela é inconclusa, como é inconcluso meu pastor alemão no quintal, mas eles não se sabem inconclusos. 

No caso da gente, a gente assumiu a inconclusão e ao assumir a inconclusão, a gente é levada à busca. Seria um absurdo buscar sem esperança. Eu posso até ao buscar não encontrar, mas a minha esperança faz parte do processo de buscar. Não há busca desesperançada. É um contra-senso. Esse saber ... nem sempre os educadores foram um dia desafiados para saber-se interminados. Eu estou escrevendo sobre isso. Um outro saber, que eu acho que é uma sabedoria já, sem a qual não dá para ir para uma escola, é o saber de que mudar é difícil mas é possível. 

Como é, Ubiratan, que tu poderias andarilhar pelo mundo como tu andas, na África, na Europa, nos Estados Unidos, discutindo o que é a matemática e discutindo como propor a matemática, se tu não estivesses convencido que um dia pode mudar. É o impulso. Esse saber precisa ser discutido, não imposto, mas tem que ser posto em cima da mesa, para que o jovem que está se formando para ser professor amanhã, repouse nesta verdade: eu me movo como professor porque apesar de saber quão difícil é mudar, eu sei que é possível mudar. Pode ser até que o agente da mudança mais radical não seja nem sequer minha geração, mas sem a minha geração a outra não vai mudar.

D"Ambrosio - Nós trabalhamos para um outro futuro, no qual nós acreditamos.

Paulo Freire - Exato. Um outro saber que eu preciso saber é que ensinar não é transferir conhecimento, transferir conteúdo. É lutar para com os alunos, criar as condições para que o conhecimento seja construído, seja reconstruído. Isso para mim é que é ensinar. Enquanto eu não estiver convencido disso, enquanto eu estiver pelo contrário convencido que ensinar é chegar às nove horas da manhã e despejar um discurso transferidor de objetos, e que são apenas perfis de objetos, que são os conteúdos, então eu não sei o que é ensinar, eu não sei o que é aprender. 
É preciso que eu, como professor, saiba que do ponto de vista histórico, o homem e a mulher primeiro aprenderam, para depois ensinar. O aprender precedeu sempre o ensinar. O que é que está acontecendo na sistemática da escola? O ensinar virou o mais importante, e o aprender foi burocratizado com a burocratização do ensinar. Na verdade, o que eu não posso é deixar de conhecer os dois em processo contraditório dialético, em que quanto melhor eu aprendo tanto melhor eu posso ensinar e quanto mais eu ensinar tanto melhor se pode aprender. 

Mas foi aprendendo socialmente que historicamente as mulheres e os homens descobriram no ato de aprender diluída a prática de ensinar. Um dia na história dos homens e das mulheres, um dia mais ou menos recente, é que descobriram que porque aprendiam era possível ensinar, e aí se sistematizou o trabalho de ensino. A gente perdeu essa noção da história e inverteu os papéis. Eu também estou escrevendo sobre isso. Eu acho que às vezes é preciso recuperar historicamente o grande papel de aprender, sem que isso signifique nenhuma diminuição do ensinar.

D"Ambrosio - A escola deve ser um ambiente, ser tornado um ambiente mais para compartilhar esse processo de busca, e não um ambiente onde se passa conhecimento.

Paulo Freire  - Claro. Poderia se pensar que eu estou defendendo aqui um papel subalterno para o professor. De jeito nenhum. Indiscutivelmente o papel do professor, o papel do ensinante, é um grande papel. Ele/ela tem uma grande responsabilidade de ensinar. E professor que não ensina não se justifica, ele não se explica a si mesmo. 

Agora, é preciso clarear e esclarecer o que significa mesmo ensinar. E quando a gente busca compreender na própria prática o que é ensinar, a gente tem que concluir que o próprio esforço do processo social da produção do conhecimento põe de lado qualquer possibilidade de transferir conhecimento. Eu produzo, eu crio, eu recrio o conhecimento, eu não engulo conhecimento. 

Eu me lembro de uma expressão irônica de Sartre, quando ele criticava o que ele chamava de concepção nutricionista do saber. Ele diz: trágica e dolorosa a concepção nutricionista do saber, em que o professor alimenta, e você vê as metáforas todas que a gente vê na linguagem comum para nos referir ao problema do conhecimento. Tem muito a ver com alimento. Você fala de fome de saber, sede de saber. Você não fala na curiosidade de saber. Você fala na sede do saber. Eu não tenho que beber saber, nem tenho que comer saber. Eu como uma feijoada, não conhecimento. Conhecimento eu produzo socialmente.

D"Ambrosio - A idéia da produção do conhecimento, sobretudo em matemática, parece que ficou muito esquecida.
 
Paulo Freire - Muito, muito, muito.

D"Ambrosio - Se produz muito pouco no sistema escolar. Eu acho que essa oportunidade desse papo com Paulo Freire foi realmente um momento muito importante para todos nós, e esses do congresso que nos assistem vão sentir aquela pontinha de inveja, porque nós tivemos o privilégio dessa conversa com o Paulo.

Paulo Freire - Eu quero mandar através de vocês que estarão lá, o meu grande abraço a todos e a todas que vão comparecer ao congresso e lhes dizer que minha ausência só se poderia explicar mesmo por uma questão de cuidados que eu e meus médicos estão tendo. Eles estão fazendo força, e eu concordo com o esforço deles, no sentido de ver se eu demoro um pouco mais no mundo. E com isso eu concluo.

Maria do Carmo - Gostaria também de agradecer estar com o Sr. Quando o Prof. Ubiratan começou dizendo que todos nós fomos, de algum modo, alunos de Paulo Freire, é verdade, mas nem todos conseguiram entender. Porque cada vez tem uma coisa nova. A gente está sempre aprendendo coisas novas. Os dois representam para nós uma mudança de modelo. o Sr. em geral, em educação, e o Prof. Ubiratan D'Ambrosio em educação matemática.

Paulo Freire - Com o D'Ambrosio você extrapola o adjetivo matemático e pode ficar só na educação mesmo. Eu acho que D'Ambrosio é na verdade até mais que um educador, ele é também um pensador da educação atual. Agora eu peço desculpas para vocês e eu vou correndo para o doutor.

Caro leitor, qual é a parte do texto que você concorda com Paulo Freire?  E qual você discorda? Porque? 

Gostaria de acrescenta algo?

Participe, deixe seu comentário.



Referência:
Site: Vello
Montagem: Matheusmáthica

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